Matilda Inquieta

Nascido da necessidade de ser e estar presente em linhas e palavras que dão vida e sentido a desejos e sensações que às vezes, só ali, encontram espaço e sentido.

O Despertar de John Galliano

Ame-o ou odeie-o, é impossível negar o talento e o impacto de John Galliano na história da moda. 

No documentário High&Low, que estreou dia 26/04 no MUBI, o diretor Kevin Macdonald examina a trajetória impressionante do estilista, do seu sucesso estratosférico na Dior ao seu conturbado relacionamento com o vício, sua condenação por discurso de ódio e sua jornada em busca de perdão e recomeço. 

Não é sempre que temos a oportunidade de conhecer um grande designer, mas uma vez que você via o que John estava fazendo, você percebia que ele era um deles” diz a toda poderosa Anna Wintour em um dos trechos do doc, deixando claro não só sua profunda admiração, mas o efeito que Galliano teve em uma geração inteira.

Desfile Alta costura Dior Spring 1998
Christian Dior Spring 1998 Couture Foto: Miquel Benitez

São muitos os depoimentos de amigos, famosos ou não, que costuram o filme e vão dando forma ao ser humano complexo, contraditório e fascinante que criou alguns dos desfiles e coleções mais memoráveis de todos os tempos. Sua carreira é fascinante não só por seu talento absurdo e indiscutível, mas por encapsular um momento muito único onde grandes conglomerados transformaram a maneira que consumimos e vemos a moda e o luxo.

Dos Novos Românticos ao Topo do Mundo

O clash de mundos, maneiras de pensar e prioridades, entre estilistas e CEOS, é muito bem retratado também no livro Gods&Kings de Dana Thomas, que aborda um pouco este momento em que nomes como Marc Jacobs, Alexander McQueen e claro, Galliano em seu auge, assumem algumas das mais prestigiosas Maisons francesas, em uma jogada de mestre de Bernard Arnault. “De repente, a moda era Rock n’Roll”, como diz o ex-editor da Vogue Britânica, Edward Enninful, e os designers, as novas estrelas deste universo, com um poder nunca visto.

Foto: Annie Leibovitz

Com o dinheiro do grupo LVMH bancando as ideias, viagens e sonhos mais audaciosos, cada desfile se torna um espetáculo ainda maior. Aumentando a pressão para a próxima coleção, que também acaba acontecendo em intervalos cada vez menores. Em um ponto do documentário, Galliano revela ter sido responsável pela direção criativa de 32 coleções ao ano. Não há criatividade, vontade, garra, nem preparação para algo tão gigantesco e massacrante como isso. É difícil dizer o que alimentava o quê, e em uma indústria que não dá espaço para erros e fragilidades, o vício oferecia a muleta para seguir em frente e cumprir o trabalho. O que quer que isso significasse e custasse.

Um produto de seu tempo, o estilista não via limites nem fronteiras em sua busca por inspiração andando muitas vezes em uma linha tênue entre homenagem e apropriação. Sua coleção de Alta-Costura “Les Clochards” foi duramente criticada pela imprensa e provocou protestos nas lojas da Dior, que o acusavam de humilhar e fazer piada dos moradores em situação de rua.

Os sinais de que Galliano vivia em uma realidade alternativa, como em uma das belíssimas narrativas construídas em sua mente para suas coleções e cada vez mais distante do mundo real, já estavam ali. Mas com protestos ou não, a coleção foi e ainda é um sucesso que transcendeu a moda e faz parte também da cultura pop (quem não lembra de Sarah Jessica Parker como Carrie Bradshaw com o famoso vestidinho de jornal?). E no final do dia, era isso que importava, as vendas e o sucesso comercial, que na era Galliano da Dior, foram estrondosos.

O rei está nu

De certa maneira, os episódios terríveis no Café La Perle, além de mostrarem um ser humano quebrado, em luto pela morte de seu amigo e colaborador Steven Robinson, perdido no vício e na mágoa, buscando ativamente ferir os outros, foram também um pedido de ajuda e talvez, a única razão pela qual John Galliano ainda esteja entre nós.

Há 10 anos sóbrio, ele ainda tem dificuldade de encarar e entender completamente o porquê, fez o que fez, naquelas noites. Quantos incidentes foram com comentários antissemitas e racistas? Em vídeo são 2, mas se existem mais, não sabemos, nem ele parece lembrar. Assim como não se lembra de não ter pedido desculpas para suas vítimas, que ficaram severamente traumatizadas, pelo desenrolar do julgamento e a exposição na mídia.

As palavras da brilhante Robin Ghivan ficam ressoando na minha mente: “É possível achar que ele cometeu algo terrível, e ao mesmo tempo, querer que ele tenha uma segunda chance.” A cultura do cancelamento é algo que me interessa muito. Sim, acredito que existem ofensas, erros e crimes que não são passíveis de reformas. Mas acho necessário analisar caso a caso, entender os contextos e nos perguntar se existe possibilidade, interesse e espaço para aprendizado e crescimento. Porque senão, estamos apenas condenando pessoas a exílios eternos, sem nenhuma chance de redenção, privando-os de melhorar e contribuir de maneira positiva com a sociedade. Não acredito que somos nem a melhor nem a pior coisa que fazemos, somos a soma de tantas coisas e momentos. Não é uma discussão simples e nem fácil, não tenho respostas, apenas muitas perguntas.

O fato é que independente dos opositores, John Galliano foi rapidamente aceito de volta, ainda em 2014, para ocupar a posição de diretor criativo na prestigiosa Maison Martin Margiela, onde continua até hoje.

Reawekening Fashion

Seu talento e suas criações continuam a emocionar e impressionar novas gerações que talvez nem saibam de suas transgressões passadas e exageros. Na temporada de Alta Costura de 2024, o desfile da Martin Margiela Artisanal foi eleito o ponto alto da temporada por críticos e público, gerando uma enxurrada de vídeos virais dissecando os looks e tema da coleção além de desafios no TikTok que buscavam emular a beleza criada por Pat McGrath, colaboradora de longa data do designer.

Zendaya, Ariana Grande e Gwendoline Christie usam looks da Maison Margiela

No MET Gala deste ano, cujo tema foi “Sleeping Beauties: Reawakening Fashion”, um título que parece quase propositalmente aludir ao esperado comeback de Galliano (fontes dizem que Anna Wintour queria que o estilista e seu legado fossem o tema do baile, mas não foi possível). De qualquer jeito, o tema escolhido favoreceu a estética de John e inúmeras celebridades atravessaram o tapete em looks completos da Maison Margiela ou em vestidos que referenciavam versões de arquivo das eras Galliano na Dior e na Givenchy, mostrando mais uma vez, sua dominância como gênio criativo e que em 2024, sua influência na moda está tão em alta, quanto em 1987, quanto ganhou o British Designer Award of the Year.

Poucas pessoas conseguem jogar um jogo tão disputado, em um nível tão alto, por tanto tempo. Galliano, mais uma vez, prova que está em uma liga seleta e que não vai a lugar algum. Com sucessos nas passarelas, apoiadores fiéis da indústria e o documentário que busca segundo ele, não que as pessoas o perdoem, mas que elas o entendam, sinto que estamos vivendo um renascimento do estilista (ou seria o descancelamento?). Rumores dizem que talvez seu próximo cargo seja na Givenchy, onde ficou brevemente entre 1995-1997, ou quem sabe em alguma outra grande Maison.

Aonde quer que ele vá, a única certeza que temos quando se trata de John Galliano é que podemos esperar sermos impressionados, envolvidos em enredos mirabolantes e intensos de fugas e universos paralelos, e boas doses de encantamento e ousadia que parecem estar cada vez mais raros nas passarelas e coleções.

Como fã, dele e de moda, eu mal posso esperar pelos próximos capítulos.

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