Precisamos conversar.

Eu tinha catorze anos e estava no primeiro ano do Ensino Médio, em um colégio novo, quando no primeiro semestre anunciaram que haveria uma viagem para as Cidades Históricas de Minas. Eu lembro de ter ficado animada. Nessa idade, viagens em grupo sempre são divertidas; era uma oportunidade para eu conhecer mais gente (mesmo que tivesse entrado com alguns amigos de outro colégio, e até professores da minha antiga escola dessem aula lá ). Na real, eu me sentia bem a vontade, mas o que é bom sempre pode ficar melhor, ou eu pensava.       

Aos 14 anos, na verdade durante a adolescência, somos tão jovens e ingênuos em relação a uma porrada de coisa, apesar de termos certeza que temos o mundo pelas bolas … Talvez alguns de nós tenham uma maturidade acima de seus anos, mas independente, você nunca vai saber ou estar preparado para lidar com tudo . E eu fui entender isso de maneiras dolorosas ao longo do tempo, depois de processar muita coisa que aconteceu nessa época. Uma delas tendo sido um episódio que lá atrás, do alto dos meus 14 anos e de achar que entendia o que tinha acontecido, não ter achado nada sério até uma amiga minha contar pra sua mãe e ver a revolta que provocou nela. Não lembro se ela chegou a ir ou não ao colégio tirar satisfações, mas sei que aquilo acendeu um alerta em mim. O primeiro de muitos que viriam a se acender ao longo dos anos seguintes.     

Eu havia sentido um incômodo inicial, mas estava tão acostumada a não reclamar pra não ser a “fresca”, a”chata”, a “que não sabe brincar”, coisas tão comuns que usam desde cedo para nos calar quando repreendemos o comportamento masculino.      

Algumas coisas nessa viagem foram esquisitas. O incidente em si,do qual eu fui a primeira vítima e foi repetido com TODAS as alunas da viagem, simulava uma bronca/conversa atraindo a aluna até o quarto dos 3 professores, que neste momento apagavam a luz e começavam uma zona. A única coisa que senti foi o corpo do professor que já havia me dado aula em outro colégio caindo sobre mim e uma tentativa desengonçada de cócegas ou sei lá o que. Enquanto os outros dois se aproximavam no escuro. Chutei, soquei, xinguei e acho que entenderam que eu não estava encarando como uma brincadeira.      

Quando acenderam a luz, levantei da cama em busca de sair e ainda tive que ouvir pedirem que não estragasse a brincadeira para as outras meninas. Cheguei confusa no meu quarto, obviamente contei, mas minhas amigas pareciam achar normal. Bobo, mas  engraçado. E uma a uma, todas foram passando pelo quarto. Não falei mais nada.       Fiquei doente na viagem.       

Durante anos repeti pra mim mesmo que, pelo menos, foi o professor que eu conhecia desde pequena, que foi pajem do casamento da minha mãe, que se jogou em cima de mim e me encostou. Ele claramente, NUNCA, teria nenhum motivo escroto. Mas a gente cresce e começa a ver as coisas por um outro prisma: não importa o motivo, ele nunca deveria ter se colocado nessa situação de ser um homem de 26 anos se jogando a força e no escuro em cima de uma menina de 14, sua aluna, pra fazer “cócegas”, enquanto outros dois homens adultos e mais velhos vem “ajudar”.    

Isso não é certo. É impróprio de diversas maneiras. Abusivo. Invasivo. Se aproveitar da confiança, usar o poder e a influência de adultos e professores para atrair meninas para dentro de seus quartos. Eles estavam ali para nos proteger, cuidar, foi essa a promessa que fizeram para todos os pais antes de nos levarem.          

Acho que o que mais me machucou e tornou tudo mais difícil de entender, é que a pessoa que eu achava que tinha me protegido, foi quem na verdade me feriu. Talvez até sem se dar conta. Afinal, os homens são mestres nisso. Tão acostumados desde cedo com uma sociedade que passa pano e raramente os culpabiliza e exige alguma reparação séria nesse tipo de assunto.

Por isso eu escrevo. Este incidente pode ter sido só um dos que eu não gostaria que tivesse acontecido comigo, mas aconteceu, e me mudou de diversas maneiras. A única coisa boa que tirei de tudo, foi que sim, precisamos conversar.

Precisamos falar sobre como o Brasil trata suas mulheres, jovens e crianças. Com um número alarmante de assédio sexual, a falta de diálogo e julgamento só contribuem para aumentar a masculinidade tóxica, e dificultar o já doloroso processo das vítimas que decidem ir à justiça e são constantemente desacreditadas ou atacadas.

      Quando é a idade ideal para se discutir assédio, responsabilidade, consentimento, limites?     

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